Os últimos 4 anos foram mais do que intensos, impuseram novidades e trouxeram acontecimentos marcantes para a história do Brasil e do planeta. Eles nos colocaram diante de novos medos, novas dúvidas, novos hábitos, novas formas de consumir produtos e serviços e novas formas da gente se relacionar com o corpo e com nossa saúde mental.
Do último ano bissexto para este, no ano de 2024, identificamos como os sintomas e efeitos da pandemia alteraram os nossos comportamentos e formas de estar no mundo. Pensar nesses anos é importante como ponto de debate e reflexão sobre a sociedade, as novas formas e hábitos de consumo.
Alguns debates, no contexto brasileiro, chamam nossa atenção quando pensamos nas principais transformações que aconteceram. Desde alterações climáticas até mudanças nos debates travados na sociedade, os últimos 4 anos proporcionaram transformações nos modos pelos quais nos relacionamos entre si, na forma como falamos e entendemos sobre determinados assuntos e nos padrões e hábitos de consumo. Tanto no ambiente privado entre familiares e amigos, quanto no ambiente mais público, atualmente forjado pelas redes sociais, as discussões sobre racismo, feminismo, homofobia, transfobia, etarismo e saúde mental passaram e passam por muitos avanços e ampliações. Alguns hábitos e comportamentos foram modificados, e hoje, 4 anos depois, temos a oportunidade de entender o que ainda está vivo e fazendo parte de nossos cotidianos.
1 – Conversas mais abertas e diretas sobre racismo e a descolonização do olhar das pessoas brancas
Os números de algumas pesquisas e compilados de dados, como o Google Trends, informam que na última década, em especial nos últimos quatro anos, os casos de violência contra negros, dentro e fora do país, despertaram o interesse dos brasileiros e como consequência as buscas pelos termos racismo estrutural, genocídio do povo negro, privilégio branco e igualdade racial aumentaram. Dados do Google Trends identificaram a morte de George Floyd em maio de 2020 como o estopim para o início das buscas sobre o tema do racismo e seus desdobramentos. O interesse na pergunta “O que é racismo estrutural” foi recorde em 2020.
Entre maio e junho, em meio à investigação sobre a morte do adolescente João Pedro Mattos Pinto, as consultas por violência policial bateram o recorde da última década. Desde o final de junho de 2020, as buscas por “Black Lives Matter” cresceram quase 50 vezes. No Brasil, a busca pelo termo em português, “Vidas negras importam”, atingiu recorde de interesse em julho de 2020. No final de agosto, o Brasil foi um dos cinco países que mais buscaram por pelo termo “antirracismo” em todo o mundo.
Em abril de 2021, quando o brother Rodolfo foi racista sobre o cabelo de outro brother, João no BBB 21, o Google Trends registrou um aumento de 1320% na busca pelo termo racismo em uma semana, com destaque para a busca do termo “blackpower”. O termo “Filmes sobre racismo Netflix” cresceu mais de 200% nas 24 horas após a eliminação de Rodolfo no BBB. O BBB 21 também trouxe à tona uma discussão sobre colorismo a partir do debate racial convocado pela figura do Gil do Vigor. O debate sobre o colorismo, segundo pesquisadores, ocorre por desconhecimento, preconceito e herança das várias denominações raciais que existiam no Brasil até as décadas de 1980 e 1990.
“As pessoas diziam que eram morenas claras, marrom bombom e uma infinidade de termos porque elas tinham vergonha de assumir que eram negras. A pessoa pensa ‘eu não quero ser isso, eu prefiro ser morena”, explica Maria de Fátima Oliveira Batista, professora à disposição da Universidade de Pernambuco.
2 – O feminismo em debate nos últimos 4 anos
As discussões em torno do feminismo enfatizaram questões sobre a jornada da mulher e o mercado de trabalho, maternidade, economia do cuidado, violência doméstica e envelhecimento.
Há destaque para o aumento no borramento da fronteira entre trabalho e casa, vivenciado pelas mulheres. Estar em casa trabalhando no modelo home office, tendo que fazer a gestão da casa e dos filhos, no caso de mulheres que são mães, ampliou os debates sobre dupla ou até mesmo tripla jornada feminina. Segundo especialistas:
“A jornada, que já era dupla para aquelas mulheres que trabalhavam fora de casa, ficou ainda mais pesada quando todos tiveram que permanecer dentro de suas residências, na tentativa de conter o avanço da covid-19. Então, por opção ou falta de opção, as mulheres tiveram que sair dos seus empregos formais”, explica a professora de Administração Pública da USP, Denise Bonifácio.
O retorno para o mercado de trabalho foi experimentado com maior dificuldade pelas mulheres, porque elas foram as principais responsáveis por abrir mão do trabalho para se dedicar aos cuidados dos filhos e dos lares. Embora o tema do burnout atinja a todos, pela carga excessiva de trabalho dentro e fora de casa, são as mulheres que mais sofrem e buscam ajuda. A constatação foi registrada na pesquisa Women in the Workplace de 2021. 42% das entrevistadas já sofreram com diversos sintomas da doença. Enquanto a pesquisa replicada um ano depois, em 2022, identificou que uma em cada três mulheres pensou em deixar o emprego devido ao burnout.
Segundo dados do Google Trends, as buscas por violência doméstica no Google bateram recorde em 2020. Algumas organizações voltadas ao enfrentamento da violência doméstica observaram aumento da violência doméstica por causa da coexistência forçada, do estresse econômico e de temores sobre o coronavírus. O Brasil registrou uma denúncia de violência doméstica por minuto em 2020. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que houve aumento de 16,3% em relação a 2019.
Um reflexo de que os debates sobre o feminismo e seus desdobramentos vieram pra ficar foi o tema da redação do ENEM de 2023 ter sido sobre a inviabilização dos cuidados femininos.
3 – Libertação do grisalho como um pontapé para conversas sobre etarismo
Indo de encontro a conhecida percepção de que “homens quando envelhecem ficam grisalhos e charmosos” , a pandemia criou um novo padrão de beleza para as mulheres mais velhas: as grisalhas. De 2020 para cá, cada vez mais mulheres estão deixando seus branquinhos à mostra.
Esta tendência tem reflexo nas aparições de artistas e influenciadoras nos programas de TV e nas redes sociais com seus cabelos brancos. A moda de assumir os fios brancos já vinha ganhando espaço há alguns anos, no entanto ganhou mais força na pandemia, quando algumas personalidades deram um tempo nos produtos químicos e adotaram um look mais natural. Mulheres como Salma Hayek, Gwyneth Paltrow, Meryl Streep, Astrid Fontenelle, Camila Coutinho, Samara Felippo, Preta Gil e Kelly Key assumiram seus cabelos do jeito que nascem. O grisalho virou sinônimo de autenticidade e tem colocado em pauta uma nova discussão sobre a autoestima e envelhecimento da mulher.
4 – A luta LGBTQIA+ progredindo e regredindo ao mesmo tempo
No Brasil a população LGBTQIA+ está mais presente do que nunca na política – pela primeira vez o Congresso Brasileiro elegeu duas deputadas federais, Erika Hilton (Psol – SP) e Duda Salabert (PDT – MG), as políticas públicas para a população trans, principalmente, ainda são insuficientes.
“Avançou-se muito e a gente aplaude, Mas ainda vemos um cenário insuficiente diante da demanda, que ainda é de cunho muito primária”, explica Bruna Benevides, referência na luta pelos direitos humanos.
Países como Canadá, Portugal e Nova Zelândia têm sido pioneiros em avanços significativos na legislação relacionada à segurança e aos direitos LGBTQIA+. Além disso, tem havido um notável aumento na visibilidade e representação desse grupo na mídia e na cultura popular, com a inclusão de personagens LGBTQIA+ em filmes, programas de TV e literatura.
No entanto, enquanto o progresso é evidente em algumas nações, em contrapartida, em países como Rússia, Hungria, Polônia e Itália, observamos uma tendência conservadora que tem resultando na revogação de direitos e na implementação de políticas que prejudicam diretamente os direitos LGBTQIA+. Essa regressão se manifesta por meio de proibições de expressões culturais do grupo, bem como pela persistência da violência e discriminação contra indivíduos LGBTQIA+.
5 – A saúde mental mais em pauta do que nunca
As consultas por burnout aumentaram quatro vezes no Brasil em cinco anos, considerando dados da comparação de 1º de janeiro a 22 de junho de 2023 com o mesmo período de 2018. Já é um consenso nos estudos com foco no gênero, nas sexualidades e nas negritudes que devemos analisar qualquer experiência e contexto social a partir de uma visão interseccional. Isto implica no entendimento de que há uma sobreposição entre identidades e fatores sociais. Explico: não dá para tomar a cor de pele de uma pessoa como definidora de sua identidade – a identidade de gênero, a orientação sexual, o local de origem, dentre outros elementos, implicam e se sobrepõem.
O fenômeno do burnout é interessante de ser analisado a partir deste prisma. Ser suscetível a pressões e estresses diários é um risco que todas as pessoas correm, no entanto, algumas pessoas tendem a sofrer mais com esta questão pelo entrecruzamento de identidades – mulheres são mais afetadas que homens; mulheres que são mães são mais afetadas do que mulheres que não são mães; mulheres que são mães e que convivem em ambientes de precariedade são mais afetadas do que aquelas que não vivem em ambientes precários. A composição de identidades e fatores estipula quais trajetórias serão mais propensas aos distúrbios de saúde mental.
De 2020 para cá, o Brasil assiste ao aumento nos transtornos de ansiedade, depressão e insônia, entendido por alguns especialistas como uma Segunda Pandemia. Números da pesquisa Datasus apontam sobre o aumento de 7 mil para 14 mil no total de óbitos por lesões autoprovocadas de 2013 para 2023. No primeiro ano da pandemia, a incidência de pessoas com ansiedade aumentou em 25%, de acordo com a OMS.
Houve o aumento no uso de medicamentos para transtornos e doenças mentais, assim como aumento da busca por acompanhamento psiquiátrico. Antes da pandemia de 2020, cerca de 193 milhões de pessoas tinham transtorno depressivo e 298 milhões tiveram transtornos de ansiedade em 2020. Após o ajuste para a pandemia, as estimativas iniciais mostram um salto para 246 milhões para transtorno depressivo e 374 milhões para transtornos de ansiedade, segundo dados do conselho federal de farmácia
O fenômeno da digitalização da vida possibilitou fazer terapia de modo online, encaixando melhor na rotina das pessoas e muitas vezes com as duas pessoas, paciente e terapeuta, residindo em locais diferentes.
6 – O Boom dos podcasts
Assim como as plataformas de streaming, que tiveram crescimentos muito expressivos nos últimos anos, os podcasts passaram a habitar a rotina de parte da população. Podcasts são mais íntimos, escutamos sozinhos, portanto, são mais pessoais também. Realidade há pelo menos 2 décadas nos Estados Unidos, os podcasts caíram na graça de parte do povo brasileiro intensamente depois de 2020.
Pesquisa da IMO sobre entretenimento feita em abril de 2023 mostra que 43% dos Brasileiros escutam Podcasts como parte de seu entretenimento e informação.
De acordo com o relatório Podcasts no Brasil 2021, produzido pela plataforma de streaming de áudio Spotify, o número de podcasts disponíveis no país aumentou mais de 80% em 2020 em comparação com o ano anterior. Com o crescimento do mercado, houve uma diversificação significativa nos temas e formatos de podcasts disponíveis. Hoje, é possível encontrar programas sobre uma ampla variedade de assuntos, desde entretenimento e cultura até educação, negócios e saúde.
7 – O delivery é o canal preferido de consumo de alimentação fora do lar
O aumento nos hábitos de consumo de comida por delivery e no ato de fazer compras por aplicativos alteraram os modos de planejamento alimentar das pessoas, consolidou os serviços de restaurantes exclusivamente para delivery, as “darks kitchens” e a existência dos mini mercados exclusivos para venda online.
Em 2019, apenas 30,4% dos brasileiros usavam serviços de entrega de refeições. Entretanto, entre 2020 e 2021, esse número aumentou para 54,8%, de acordo com a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil). Os dados da pesquisa de comportamento de varejo feita pela IMO insights em 2023 aponta que 63% dos brasileiros usa Apps de entregas de comida, sendo que para 46% este é o canal preferido de consumo de alimentação fora do lar.
Quase quatro a cada cinco restaurantes atendeu seus clientes por delivery, de acordo com dados de abril de 2022 da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). O número representa 78% dos estabelecimentos brasileiros. Desses, 35% passaram a ter delivery durante a pandemia. As dark kitchen se consolidaram como uma tendência no setor de food service.
8 – O crescimento dos procedimentos estéticos, cirúrgicos e harmonização facial
De acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), o número de procedimentos cirúrgicos estéticos em todo o mundo aumentou em média 7% entre 2020 e 2024. Isso inclui procedimentos como aumento de mama, lipoaspiração, rinoplastia e abdominoplastia.
A busca por procedimentos de harmonização facial, que incluem preenchimento com ácido hialurônico, botox e outras técnicas para melhorar a aparência facial, também cresceu substancialmente. Clínicas de estética e profissionais relataram um aumento na demanda por esses procedimentos, especialmente entre os jovens adultos.
O mercado global de procedimentos estéticos tem experimentado um crescimento significativo, impulsionado pelo aumento da conscientização sobre cuidados com a aparência e pela busca por padrões de beleza idealizados. Estima-se que o mercado global de cirurgia plástica estética atinja US$ 51,6 bilhões até 2025, de acordo com a Grand View Research.
A influência das redes sociais e das celebridades tem desempenhado um papel importante no aumento da busca por procedimentos estéticos. A exposição a imagens retocadas e padrões de beleza inatingíveis nas mídias sociais tem levado muitas pessoas a procurar procedimentos para alcançar uma aparência desejada.
9 – Crescimento da indústria de Skincare no Brasil
O interesse pelo skincare cresceu significativamente em todo o mundo nos últimos anos, impulsionado em parte pela influência da beleza coreana, a K-beauty, e pela popularização de rotinas de cuidados com a pele mais elaboradas. No Brasil, esse comportamento também foi influenciado pela disseminação de informações e dicas de cuidados com a pele por meio de redes sociais, blogs, vídeos no YouTube e outros canais de mídia digital, especialmente durante a pandemia. Dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec) mostram que o segmento de skincare teve um aumento de de 161,7% nas vendas em 2020, entre janeiro e outubro, em relação ao período equivalente em 2019.
Essa tendência de crescimento se manteve pós pandemia e, com isso, a indústria de beleza no Brasil registrou alta de 14% nas vendas em 2023, de acordo com a Circana, empresa global de data tech para análise do comportamento de consumo.
O varejo especializado em beleza e as marcas nacionais, ligadas ou não a nomes de influenciadoras digitais, atuam em diversas faixas de preço e atendem o mercado consumidor brasileiro com suas particularidades, criando sua cultura própria de beleza já denominada como B-beauty.
10 – A volta dos Psicodélicos
Se juntando às tendências de diversão e saúde mental, tivemos o crescimento do uso de psicodélicos por parte da população e também das primeiras experimentações por parte de grupos da população brasileira. O investimento em pesquisa sobre psicodélicos tem crescido consideravelmente. Em 2021, a Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS), uma organização sem fins lucrativos dedicada à pesquisa de psicodélicos, anunciou uma doação de US$ 26,9 milhões para avançar em estudos clínicos sobre MDMA-assistida para o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
Vários países têm aprovado estudos clínicos para investigar o potencial terapêutico de psicodélicos. No Brasil, por exemplo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou estudos clínicos sobre o uso terapêutico de psilocibina, o princípio ativo dos cogumelos mágicos, para tratar condições como depressão e transtorno de ansiedade.
Eventos e conferências relacionados a psicodélicos têm atraído um número crescente de participantes. Conferências como a Psychedelic Science, realizada pela MAPS, e a Breaking Convention, sediada no Reino Unido, têm sido plataformas importantes para compartilhar pesquisas e conhecimentos sobre psicodélicos.
Houve uma mudança gradual na percepção pública em relação aos psicodélicos, com uma maior aceitação de seu potencial terapêutico e recreativo. Isso tem sido evidenciado por pesquisas de opinião que mostram um aumento no apoio ao uso terapêutico de substâncias psicodélicas.