O Carnaval, embora muitas vezes considerado um tema e costume trivial, carrega consigo uma importância que transcende essa percepção superficial. Em 2024, a projeção é de que o feriado tenha injetado cerca de R$10 bilhões na economia do país, representando um aumento de 9% em relação ao ano anterior, de acordo com dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

Anualmente, o Carnaval mobiliza milhares de pessoas, impulsionando setores inteiros da indústria tradicional e criativa, abrangendo serviços ligados, direta ou indiretamente, aos festejos, como turismo, eventos, transportes, artistas, imprensa, publicidade, entre outros. Esses números refletem a magnitude do impacto do Carnaval não apenas como uma festividade cultural, mas também como um motor econômico significativo e um ponto de debate e reflexão sobre a sociedade, influenciadores e marcas.

As origens do Carnaval e o racismo

O carnaval brasileiro tem origens européias, cristãs e africanas, com a influência da chegada dos “entrudos” de Portugal, das festas mascaradas italianas e da influência das religiões de matriz africana no Brasil. O “entrudo”, palavra em latim que significava “entrada” e “começo” fazia referência ao começo da Quaresma. Entretanto, o “entrudo” já fazia parte de festejos antes mesmo da Igreja Católica ser hegemônica, celebrando o início da primavera no hemisfério Norte. Com o início da Era Cristã e sua supremacia, o “entrudo” passou a integrar o calendário religioso, indo do sábado “gordo” até a quarta feira de “cinzas”.

Foi em meados do século XVII que o “entrudo” chegou às ruas do Rio. Eram pessoas escravizadas brincando e festejando nas ruas do atual centro da cidade, com suas caras pintadas, jogando farinhas e bolinhas de cheiro (não muito bons) umas nas outras, enquanto as pessoas brancas em suas janelas e sacadas despejavam baldes de água abaixo.

Após uma série de denúncias, encabeçadas principalmente pela imprensa vigente, a prática de festejo dos “entrudos” foi criminalizada na passagem da Monarquia para a República.

No entanto, antes mesmo desta ação, a elite branca já realizava e frequentava bailes de máscaras de carnaval particulares para festejar o período do início da Quaresma. Nestes bailes, diferentemente do “entrudo”, havia músicas e instrumentos musicais, provenientes da região da Boêmia. Com a consolidação destes bailes de máscaras, as elites reunidas criaram o Congresso das Sumidades Carnavalescas, que deixaram de estar somente em ambientes privados e ocuparam as ruas da cidade, enquanto os “entrudos” eram proibidos de circular.

O racismo declarado da criminalização da ocupação urbana de um certo tipo de população nas ruas não fez com que as camadas populares desistissem de festejar e circular pela cidade. Na última década do século XIX, foram criados os primeiros cordões, ranchos e marchinhas, que eram uma tentativa de adaptação às repressões policiais. A criação destas novas maneiras de se festejar incluiu a necessidade de rever e mudar alguns comportamentos nos festejos e os bairros de ocupação. Os cordões, ranchos e marchinhas foram se deslocando para os entornos da cidade, no chamado subúrbio carioca, e tinham uma organização e estética muito semelhante às procissões religiosas e católicas, com pitadas de manifestações populares da capoeira e dos bumbos. Também neste mesmo período surgiu na Bahia o cortejo do Afoxé, com forte influência do candomblé. De origem iorubá, a palavra “afoxé” pode ser traduzida como “a fala que faz”.

As marchinhas de carnaval no Rio surgiram neste período, com destaque para a figura de Chiquinha Gonzaga, conceituada compositora carioca que morava no bairro do Andaraí, Zona Norte da cidade, que escreveu em 1899 Ô Abre Alas, a mais famosa música de marchinha de carnaval do Brasil.

Enquanto isso na Bahia, a figura de Tia Ciata, a mais famosa das ialorixás baianas, mãe de santo, curandeira e sambista ficou muito conhecida. Ao chegar da Bahia no Rio, fugindo de perseguições policiais, ela se instalou na região da Praça Onze, local hoje turístico e conhecido como a “Pequena África” (Pedra do Sal, Largo da Prainha, Gamboa, Cais do Valongo, Museu do Amanhã), trazendo consigo sua família e a herança cultural musical do samba e do costume das cantarem as músicas em grupo.

O primeiro samba gravado saiu do quintal de sua casa, no ano de 1910. A música Pelo Telefone, gravada por Donga e registrada pelo jornalista Mauro Almeida, é reconhecida como o primeiro samba registrado no Brasil. A casa de Tia Ciata era aberta para as pessoas comporem e cantarem samba, em um momento em que a festividade era proibida por lei.

“O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar
Que na Carioca tem uma roleta para se jogar
O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar
Que na Carioca tem uma roleta para se jogar
Refrão de Pelo Telefone”

Por volta da década de 1910, surgiram os corsos, desfile de carros conversíveis da elite carioca pela Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. Tal prática durou até a década de 1930.

Nesta época existiam dois modos de experimentar o carnaval: Aquele proibido por lei, que era de origem preta e pobre, onde o samba já comia solto, e aquele permitido pela lei, de origem branca, européia e elitista, com seus desfiles de carros.

Nesse caldo de efervescência cultural, os ranchos, marchinhas e cordões foram crescendo e alguns tornaram-se agremiações de bairros na década de 1920, depois passaram a ser chamados de escolas de samba. A historiografia registra que a primeira escola de samba foi a Deixa Falar, do bairro do Estácio, local vizinho à região da Pequena África. Sambistas do Estácio queriam transformar o cordão do bairro em movimento de dança, ao mesmo tempo, coordenado pelo ritmo do samba. Logo depois da Deixa Falar, surgiram a Portela (Zona Norte) e a Mangueira (Zona Norte).

As escolas de Samba e seu papel pedagógico para a sociedade

A primeira disputa entre as escolas de samba no Rio ocorreu em 1932, e em 1935, o desfile ganhou uma subvenção do governo. Desde esse período, os desfiles tiveram uma forma estética com a associação do samba ao tema do enredo. Era uma dinâmica específica: a transformação de um samba enredo, todo ano, em fantasias e alegorias (carros) e no ritmo musical do samba acompanhado pela percussão da bateria. As escolas de samba e o carnaval carioca transformaram-se em uma importante atividade econômica no Rio a partir da década de 1960 quando bicheiros e empresários começaram a investir nas escolas de samba. Mas foi somente em 1984 que foi criado o Sambódromo, com a arquitetura de Oscar Niemeyer, a construção tornou-se um dos principais símbolos do carnaval brasileiro e pontos turísticos da cidade.

Não é de hoje que se diz que as escolas de samba têm um papel pedagógico. Para além de ser sinônimo de diversão, de lazer e de sociabilidades, as escolas ensinam com seus sambas enredo. Eles têm temas e podem pautar assuntos atuais, fazendo circular, promovendo idéias e debates na própria sociedade. O enredo é o ponto de partida do desfile e de toda a organização anual de uma escola.

As doze escolas de samba do estado do Rio de Janeiro do Grupo Especial que passaram pela Sapucaí em 2024 tematizaram negritudes, cosmologias ameríndias e aspectos da cultura brasileira.

As múltiplas interpretações da cultura afro brasileira estiveram presentes nos enredos, como no caso da campeã Viradouro. Dentro da temática das africanidades, Um defeito de cor , tema da Portela, fez com que a obra homômina da autora Ana Maria Gonçalves se esgotasse dos estoques da Amazon nos dias seguintes ao desfile.

Incorporados na cultura popular brasileira, há muitos anos os enredos das escolas de Samba trazem em suas temáticas temas que refletem o que há de bom, de ruim e de curioso em nossa sociedade. São temáticas que refletem movimentações de discussões atuais da sociedade e as retroalimentam com arte, ampliando o público das discussões.

O aumento das representações da cultura afro brasileira e indigena nas temáticas das escolas de samba de 2024, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, mostra a necessidade de um novo olhar para estas culturas, de forma menos estereotipadas ou folclóricas, como já haviam sido feitas antigamente, mas com a admiração e a reflexão sobre o impacto e contribuição destas origens para a nossa sociedade atual e nossa cultura única do povo brasileiro.

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